Flores, Afonso Cruz (2015)

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Sinopse:

Um homem sofre desmesuradamente com as notícias que lê nos jornais, com todas as tragédias humanas a que assiste. Um dia depara-se com o facto de não se lembrar do seu primeiro beijo, dos jogos de bola nas ruas da aldeia ou de ver uma mulher nua. Outro homem, seu vizinho, passa bem com as desgraças do mundo, mas perde a cabeça quando vê um chapéu pousado no lugar errado. Contudo, talvez por se lembrar bem da magia do primeiro beijo – e constatar o quanto a sua vida se afastou dela – decide ajudar o vizinho a recuperar todas as memórias perdidas.

Uma história inquietante sobre a memória e o que resta de nós quando a perdemos. Um romance comovente sobre o amor e o que este precisa de ser para merecer esse nome.

«Viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias

 

Opinião:

O último romance de Afonso Cruz gira em torno de dois temas: Esquecimento e Relacionamentos; de sujeitos que esqueceram a sua vida por razões de doença (Sr. Ulme) e de relacionamentos que esqueceram o seu motivo de existir, o porquê do seu amor (caso do narrador da história e o relacionamento com a sua mulher e filha).

Existem, assim, duas histórias que se cruzam e, simultaneamente, se completam: a história do narrador (história do seu relacionamento, como este começa a definhar e acaba) e a história do Sr. Ulme (um velho que sofreu um aneurisma e perdeu a sua memória). Seguimos o protagonista na procura do passado do velho Sr. Ulme, na procura da sua infância, do seu percurso, dos seus amores, dos seus terrores.

Uma vida que se perdeu, entre todos os desastres que existem no mundo e no, aparente, desinteresse ou indiferença de todos os que o rodeiam. Daí que Sr. Ulme tenha construído um Golem, um monstro tenebroso de vários metros de altura, formado a partir de colagens de recortes de desastres, genocídio, assassinatos, morte, catástrofes.

Notas negativas:

  • O fim; a história foi magistralmente tecida e construída, de um modo como eu não sentia há muito – aquela vontade de não querer largar o livro e virar a próxima página, querer e desejar devorar as próprias entranhas do livro para que este me esclareça o turbilhão de dúvidas que foram surgindo. O que fez Cruz com este entusiasmo? Desaproveitou-o. Parece que faz um final trapalhão, pouco esclarecedor, apressado. Aqueles momentos finais que deveriam ser de degustação e apreciação de paz de espírito, tornam-se inócuos, quase vazios de significado;
  • A carga política e enviesada da escrita de Cruz. A quantidade de referencias aos modelos políticos atuais e o descontentamento do autor expresso nas linhas do texto. Exemplo pragmático desta situação: a certo ponto, o protagonista vai tentar entrevistar um ex-agente da PIDE, chamado Coelho. Só que descobre que este morreu. O comentário do narrador/escritor “Pena que o Coelho errado morreu”. Os livros devem aguçar o nosso pensamento, motivar-nos para um pensamento próprio, para uma gula incessante de conhecimento; não deve, de forma alguma, condicionar o meu pensamento, colocar em causa o que vivo, sei ou sinto, ou ditar-me como pensar, como simplesmente existir. Não serei mais livre se a literatura me tentar explicar o que a real liberdade é.

Notas positivas:

  • A mestria da escrita de Afonso Cruz; a forma como consegue transportar um imaginário floreado da música e pintura para as suas ficções;
  • O cruzamento com a música; a definição de música, da magia do som, da busca da verdade e do sentido da existência no meio de simples e frágeis notas musicais. Descobrir um caminho, o nosso solitário caminho, a compasso de acordes.

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